sexta-feira, 24 de junho de 2016

do levante


A minha insistência nunca foi decisão. Ele sempre soube. Não sei de onde tiramos essa necessidade de não perder. Não é sutil a diferença. Ele, escritor. Eu, escritora. Está aí, o problema do artigo. Eu precisei aprender as suas referências. Chuck Norris e Setevn Seagall. Quanta prepotência. A classe média precisa das referências bibliográficas, precisa da conta bancária, com o cartão de crédito para dividir tudo em 3x. No máximo. Desde quando desembarquei de Salvador, eu não tinha mais como ser a mesma. A gente cai facilmente nesse remorso, de já não querer mais tamanha indolência. Eu não estudei a vida inteira para garantir um privilégio, eu só precisava de um emprego. A vida até nos permitiu chegar até a mesma faculdade. Uma grande sacada, quase cilada. Só que nunca sairíamos para o mesmo horizonte. Eu sou a primeira geração com universitários na família, sendo que isso não importa, porque nós continuamos daqueles que escrevem sem as referências bibliográficas.

Nós lemos para passar na prova. Você olhava para a minha nota e ria do seu desespero. Como pode a filha de nordestinos conseguir esse prestígio em ter consciência e nota média? Tudo isso foi me silenciando. Eu não queria mais dividir os nosso feriados com visitas aos seu pais. Eu tinha nojo daquelas piadas, eu sentia tristeza em precisar me proteger. Você pedia todas as vezes para não polemizar, quando o que você queria mesmo era escrever e tentar as aulas de História, para conseguir o mestrado. E aí veio o trampo no metrô, as seis horas, o vale-refeição, a rotina que não combinava mais com as especulações revolucionárias. Tentava discordar com os seus autores, só não sabia que eles mal conseguiam se aproximar das minhas. Angela Davis, Lélia Gonzalez, Maria Beatriz Nascimento. Eu estava com elas o tempo inteiro, ali do lado da cabeceira, eu queria mostrar para você cada descoberta. 

Cada vez que me atirava de cima do patriarcado, sentia o seu castelinho de piso frio e estantes de livros abarrotados despencarem na minha direção. 

Como chegamos até aqui? E se a gente tivesse tido filhos? E se a pele da menina fosse preta? E se o menino tivesse cabelo crespo, como você ia defender a sua caretice à esquerda para a auto-estima do garoto? Eu estava ali do seu lado o tempo inteiro, quis garantir aquele sentimento todo, lembro de você sorrir, com os olhos puxadinhos, como quem fisga, nada e some. Permaneci segura, estava forte, estava disponível. Só que essa disposição por um grau tão frouxo de entrega foi me sufocando. Perdi peso, fiquei solta entre as calças, entre o peso do corpo que não cessa de adoecer, quando a gente trai a nossa história. Você nunca sacou a minha ancestralidade. Pois, quando a tatuo em toda textura do meu texto, da forma à margem de me apoiar nas linhas do meus próprios versos, quando eu escrevo isso é para perder aquele silêncio horroroso do primeiro abuso. Com todas elas, foi com elas que me fortaleci. Porque todas acenderam sangue para reerguer alguma razão; nem sempre achamos acúmulos de possibilidades. Eu não pretendia ter filhos, eu só precisava respirar e seguir. Ir sem necessariamente cair.

- Fábio, atende o telefone. Fábio, atende o telefone. Eu preciso xingar você. - Três frases e nenhum sinal de resposta, quando ninguém mais fala por telefone, Alê fingia ser uma mulher mais velha.

Foi levantando, acenou para um táxi, ergue-se com a bolsa toda aberta. Precisava saber o que fazer com aquela tarde a meio palmo de um longo passo de mudanças. Como esquecer tudo? Como começar a guardar as lembranças? Talvez, na verdade, não existam mais lembranças, existe uma cicatriz, um corpo esquálido, algumas fotos, textões em e-mails, poemas curtos e o apagamento do caminho de volta. Não haveria mais discussões por falta de honestidade com as suas defesas ordinárias às feministas. Fábio era jovem demais para ser tão antiquado, algemado pela forma de quem estava pouco abalado pelo que não o atingia, retrucou para si. Não por proteção. Por dissimulação da realidade. Foram tantas tentativas. A gente se amava, mas não se queria, uma conclusão. 

- Taxista, preciso ir para o metrô. Metrô São Bento. 

13h10. Alê sente o celular vibrar e iluminar por entre as linhas da bolsa amarela. Era o Fábio. Desliga. Toca mais uma vez. Era o Fábio. Fixou a mão na guia pelo pescoço, lembrou do convite para escrever um livro, para desenvolver um novo projeto, com mulheres. Escrever sem remorsos, não pela formalidade, pela liberdade, pela tomada do bastão, queria uma outra chance. 


Este texto faz parte de uma ciranda literária com o Wilson Franco: errancias.wordpress.com.

Para acompanhar essa narrativa vale ler os seguintes links:
1) Abrir-se-vos-á
2) 
Do Majestic ao Paternon
3) Paternon
4) Do Majestic a queda


sexta-feira, 10 de junho de 2016

das prezadas estatísticas

estou ferida até a alma.
seja lá qual for a sua composição.
ela é vazia, mas tem medo.
ela é silenciosa, mas ecoa gritos.
ela não valida a minha passagem sem notarem: eu não sou branca. prefiro: não-branca.

me sinto desrespeitada e submetida ao momento mais sórdido do jeito deles de nos fazerem acreditar na indecência ingenuidade de suas línguas.
in
di

duo.
não queríamos ser isso.

para além da mãe,
não forçamos a vinda,
não cantamos vitória,
não discordamos da preguiça,
amamos sem contar lucros.

continuo ferida até a alma.

vivida
a vida
cíclica
não quer mais ser dirigida,
quer ser destoante,
não pelo desgosto,
pelo gozo,
pelos corpos orgânicos da política.

para além da vida normal,
faltou o desconto para erguer um sono constante,
porém, foram muitas antes de mim.
não dá para não esquecer.

dó é de quem tem horror à linguagem das minhas ancestrais,
elas foram a principal composição dos choros pelos nossos meninos,
ainda divididos em grades
e um retângulo cavado com mãos de dentro da dor.

nós somos irmanadas e irmanados pela distinção em pele
pela
pele de cor de natureza de vida afetiva de celebração,
não precisávamos da modernidade,
acordamos de um choro acorrentado
sou agrado e muro, pixo é dizer o seu nome toda vez para não sair.





domingo, 20 de setembro de 2015

travesssias por uma ancestralidade feminina e negra

Eu quero um eu-lírico sem meios tons. O cansaço e o passado já não me iludem, pois a carga de ser mulher negra tem trazido muitas reflexões. Não se nasce negra, torna-se - parafraseando a Simone de Beauvoir. E por esses descaminhos, a solitude não me completa, só me convece do quanto emergi de uma insurgência feminina negra, já iniciada desde quando a primeira mulher africana pisou nesse Brasil. Ainda tenho muito o que aprender com elas, os meus passos vieram de longe. Traço os meus pés entre Dandara e a minha avó Raimunda, morta aos quarenta anos por uma medicação fora da validade, num pós-cirúrgico, no interior do Piauí, quando deixou nove filhos quase órfãos, com a filha mais velha aos 15 anos (Telé, minha mãe), para cuidar de seu futuro sozinha, também. São tantas histórias que confluem para esse rio, orquestrado em barcos ilhados, tantas vezes deprimidas, muitas outras altivas, ou tudo ao mesmo tempo. E a nossa única garantia é não desistir. Assim, carrego a força dessa ancestralidade: poder rever tal travessia e mergulhar nesse risco íntimo que não vão nos arrancar. E assim persisto por uma solidariedade ao nosso protagonismo que não está visível nas prateleiras das convenções sociais/ étnico-racial, porém, partilhado em grupos de mulheres, cada vez que nos encorajamos da necessidade já anunciada de não sumir de vez, não somente por nós, sim, pelos nossos filhas/ filhos. 

Antes, eu escrevia para me salvar. Agora, só desejo construir-me em narrativas por todas nós, mulheres negras. 


domingo, 15 de fevereiro de 2015

passo a passo,

por muito pouco, quando falta proteção, perdemos ideias ou chances. depois do baque, costumo calçar os pés de chão, de preferência, na terra, e ando muito, sem parar. para não perder a coragem, vale, sim, começar tudo de novo e não se descabelar. porém, depois que você começa tudo de novo algumas vezes, vale aprender os sinais da paciência, numa conciliação, sem culpa. e aprender como se rumina sem dor. porque a experiência dá corpo à travessia. e voltar já não é olhar para trás, é encarnar-se de presente. por muito muito, a vida pede arte, as vias de fato e espinha ereta. adiante, meu velho. vamos pensar durante a caminhada, pois o trem já passou e precisamos viver.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

recomeços de sexta-feira

estive num recesso longo com a minha produção literária. uma pena! penso que nunca, em hipótese alguma, devemos ou podemos largar aquilo que nos faz bem. eu gosto muito de escrever. não sei fazer poesia, mas adoro a possibilidade de trazer um despertar poético às minhas cirandas e encontros íntimos e literários através da prosa. 

o recesso foi de dois anos e meio, e eu nem saberia dizer como sobrevivi. tudo porque, estive desplugada das minhas velhas convicções. me deparei com uma militância negra, tardia (para mim), e precisei repensar a casa familiar, os afetos, a cidade natal e a assinatura. 

não foi nada tranquilo, tal folga. foram horas a fio acampadas por uma noite longa, quando me deparei mulher, negra e sem uma classificação clara sobre a minha classe social. estar no Brasil e não pensar tais categorias e etc pode deixar o sujeito num discurso apático. a injustiça aqui rege e dita os privilégios - da cor da pele, origem e gênero. por isso, decidi olhar de frente o problema e ver o que sobrava. assim, ao escrever tais linhas aqui, preciso me corrigir, não foi exatamente um recesso. afinal, não há descanso na linha de frente. desconstruir e reconstruir as suas referências e discursos são dias de pouca paz. não posso jamais dizer que foram momentos de extrema solidão. não. conheci pessoas incríveis nesse meio tempo. me apaixonei por todas, como se eu pudesse habitar corpos sem GPS. não há geografia mais especial do que poder encontrar no outro o seu próprio silêncio. poder perder-se tanto faz, quando e por quê. achar-se com os seus, com certeza, nos permite dar novos significados e presenças para um outro mundo necessário. como está aí nunca esteve bom e pautar tão por baixo os nossos quereres, playboy, não dá mais. 

pretendo daí escrever e não sobrecarregar os caracteres com o peso da chibata ou do cinismo midiático.

então, decidi por esses totens íntimos, como referência às esculturas Templos de Oxalá, do artista plástico baiano Rubem Valentim, presentes no Museu de Arte Moderna da Bahia (em Salvador). quando as conheci, tive daqueles deslumbres, de resgate ancestral e renascimento. e assim desejo o meu novo blog. a linha tênue entre o original e as vias de fato, quando as contradições superam qualquer convicção. 

bom começo para nós, ainda mais numa sexta-feira: dia de Oxalá!

vem comigo... eu, prosa. você, leitor!